Bartolomeu Campos de Queirós, em sua mais recente obra, Vermelho Amargo, volta à sua infância e expressa através de uma narrativa com vários recursos poéticos, o sofrimento de ser uma criança sozinha e sem o amor da mãe.
Em seu livro, Bartolomeu mostra sua
família, composta por ele, seus irmãos, a madrasta e o pai. O irmão que comia
vidro, a irmã obstinada por bordar em ponto cruz. O pai, por sua vez, é
mostrado com distanciamento e, sempre, como a figura marcada pelo alcoolismo.
Já a madrasta, é descrita como alguém que despeja toda sua peçonha em seus
gestos econômicos e, falta de amor, estabelecendo-se assim, um contraste com a
mãe, que é representada pela extrema delicadeza e amor em que administrava os
seus atos. Nos seguintes trechos pode se perceber essa relação:
[1] Oito. A madrasta retalhava um tomate em fatias, assim finas capaz de envenenar a todos. Era possível entrever o arroz branco do outro lado do tomate, tamanha a sua transparência. Com a saudade evaporando pelos olhos, eu insistia em justificar a economia que administrava seus gestos. Afiando a faca no cimento frio da pia, ela cortava o tomate vermelho, sanguíneo, maduro como se degolasse um de nós. Seis. (pg09)
[2] Engolia o tomate imaginando ser ambrosia ou claras em neve, batidas com açúcar e nadando num de leite, como praticava minha mãe__ Ilha flutuante__ com as mãos do amor. (pg10)
Em Vermelho Amargo, o
narrador-menino, rememora sua infância e, ao mesmo tempo, participa da
história. A “falta de amor”, elemento que perpassa toda sua obra, evidencia o
contraste, como já dito, entre madrasta e mãe.
Como mostrado no primeiro trecho acima,
a madrasta em posse do fruto tomate (maior metáfora do livro) exerce sob o ato
de fatiá-lo, gestos finos, precisos, sem a delicadeza que uma mãe teria ao
fazê-lo.
Essa expressão é mostrada pelo
autor através da maneira em que ele constrói seu texto; por exemplo, as
palavras: fatias, finas, afiando, faca e
frio. Todas elas remetem ao leitor, através da sonoridade da pronúncia, um
som fino. Ao pronunciá-las em voz alta, não é necessário abrir muito a boca
para emitir seus sons, já que o mesmo sai de maneira afiada, com a boca
estreita, se igualando ao sentido dos gestos da madrasta, hostis, como uma
lâmina.O trecho, incluso na parte final da primeira citação, comprova a idéia
abordada nesse parágrafo, “... ela
cortava o tomate vermelho, sanguíneo, maduro como se degolasse um de nós. Seis.”
Não deixando de apresentar o
contraste estabelecido entre a mãe e a madrasta, destacarei a seguir outros
momentos da obra que, também, reitera a imagem de faca, lâmina, vidro ou algo
capaz de perfurar e machucar:
"Havia na cidade a madrasta, a faca, o tomate e o fantasma. A mãe morta ressuscitava das louças, das flores, dos armários, das cadeiras, das panelas, das manchas dos retratos retirados das paredes, das gargantas das galinhas."(pg15/16)
“Ela decapitava um tomate para cada refeição.” (pg23)
“Estacionado na porta do homem da tesoura, reparava seus cortes. Tudo eu olhava devagar para bem imaginar. Sua mão firme retalhava os caminhos riscados sobre a casimira ou linho.” (pg29)
“O irmão, degustador de vidro, sabia ler.” (pg43)
“Ele pegou o lápis, reparou sua ponta e me disse: “É preciso afiar bema grafite.Só com a ponta do lápis exageradamente fina se pode fazer a palavra tomate”. Assustei-me. Para escrever a palavra tomate meu irmão necessitava de um punhal, concluí.” (pg44)
“Meu pai se encostava na pia, depois de afiar a navalha.” (pg45)De acordo com os trechos explicitados acima, pode-se notar que essa imagem é trabalhada em todo o livro. Tanto a lâmina, a faca, o vidro, o punhal, a ponta, a grafite exageradamente fina e a tesoura, são materias que perfuram, cortam, exercem violência, como uma ferida. Causam uma ruptura.
Ao enxergar todos esses elementos,
às vezes metafóricos, pode-se ter uma idéia de acordo com o que o autor
apresenta, por exemplo, a ruptura causada pela morte de sua mãe, o
distanciamento do garoto com o mundo, as violências das relações humanas e suas
representações.
Voltando a analisar as
representações de mãe/madrasta, agora com o foco na segunda citação do início
do texto, pode-se perceber que, ao contrário da madrasta, a mãe é referida com
demasiada delicadeza, tanto é que, a própria escolha das lembranças dos doces, ambrosia e claras em neve (batidas com açúcar), são importantes recursos que
compõem a intenção do autor.
A imagem das “Claras em Neve”,
realmente, lembra uma ilha (podendo estar navegando em um mar de leite), mas, também
pode remeter, da mesma maneira,à nuvens, dando a idéia de que, em qualquer
ângulo que a imagem do doce for vista, ou, até mesmo, em outras perspectivas,
sempre irá gerar uma imagem que transmite leveza.
Como se não bastasse, o elemento
“açúcar”, (contrário de amargo), é acrescentado à composição do trecho,
trazendo a tona o quão oposta, às amarguras da vida e às atitudes da madrasta a
mãe era. Pode-se considerar também, o antônimo que a palavra se transforma ao
ser comparada com o título do próprio livro.
Já o outro doce, “Ambrosia”, de acordo com a mitologia grega, era considerado como um doce divinal, em que, apenas os deuses do Olimpo podiam saboreá-lo, sendo ele vetado aos mortais. Conta a história que, quando os deuses o ofereciam a algum humano, este, ao experimentá-lo, sentia uma sensação de extrema felicidade. Há também, outra vertente desse mito que, conta que o mortal que o comesse passaria a ser imortal.
Ao olhar por esse prisma, talvez, o
autor quisesse passar a imagem de algo capaz de retirá-lo da tristeza, como diz
a mitologia. Ou, quem sabe, expressar a tentativa, subconsciente, da
imortalidade. O desejo que sua mão não partisse.
A seguir, apresento mais dois
trechos que reafirmam a diferença entre as duas, mãe e madrasta:
"Antes, minha mãe, com muito afago, fatiava o tomate em cruz, adivinhando os gomos que os olhos não desvendavam, mas a imaginação alcançava. Isso, depois de banhá-los em água pura e enxugá-los em pano de prato alvejado, puxando se brilho para o lado do sol. Cortados em cruzes eles se transfiguravam em pequenas embarcações ancoradas na baía da travessa."(pg14/15)
“Ela decapitava um tomate para cada refeição. Isso depois de tomar do martelo e espancar, com a força de seus músculos, os bifes. Batia forte tornando possível escutar o ruído na rua. O martelar violento avisava aos vizinhos que comeríamos carne no almoço. Eu padecia pelo medo do martelo e a violência da mulher ao açoitar a carne.” (pg23)
Para finalizar, após a análise
concernente à relação contrastiva entre as duas, percebe-se que o autor em sua
narrativa memorialística, também utiliza recursos poéticos como, rimas, “A felicidade nos era interditada. Toda
tristeza prenunciava uma morte que não chegava. Dormi e ao despertar-me já
amava.” e, ritmo, “Dói. Dói muito.
Dói pelo corpo inteiro.”, que, no caso, se dá através da gradação.
Em uma prosa destacam-se três
elementos, sujeitos, tempos, e espaços ficcionais. Os sujeitos, claro, além do
próprio narrador menino que revive sua história, engloba a família, incluindo
pai, mãe, madrasta, irmãos e alguns outros personagens secundários. Referente
aos tempos destacam-se todas as ações que estão inseridas na obra, em um
determinado espaço.
(Queirós, Bartolomeu C. de. Vermelho Amargo. Cosac Naify, 2011 )
8 comentários:
Meu Deus!
Fiquei chocada com a Madastra.. como assim cortava o tomeate como se estivesse degolando uma das crianças..?
Fiquei curiosava para ler este livro.
Parabéns pela análise,impecável.
Nossa, adorei seu blog ;]
http://florbrilhante.blogspot.com/
O livro é tão lindo, por "dentro" e por fora, que inspira análises. Adorei!
ótima análise, ajudou-me muito no meu preparatório para UFMG. Obrigado.
Acabo de ler Vermelho Amargo. Vim até aqui para conhecer mais, olhar mais.
Adorei a análise!
Obrigada.
Angela Gama
É um livro fantástico levando o leitor até sentir parte dos sentimentos do eu-lírico. Parabéns pela análise perfeita, ajudou ainda mais no entendimento das metáforas.
Amei o livro, ri, chorei, muito bom e emocionante, fiz um trabalho sobre ele na faculdade.
Lindo demais...
dorath ele nao cortava tomate como se estivesse degolando alguem isto é uma metafora que esta presente em todo o livro
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