No
dicionário, a palavra “clandestino” significa: “aquele que fere as leis e a
moral”. Para mim, esse verbete estimula um grande desencadeamento de significações,
sobretudo por flertar com muitas referências literárias. Logo recordo do FELICIDADE
CLANDESTINA, conto da famigerada Clarice Lispector. A narrativa
apresenta o percurso de uma menina que sonha em ter o livro Reinações de
Narizinho de Monteiro Lobato. Conquanto, motivada pela promessa de um empréstimo, a moça se frustra pela
manipulação da colega detentora do objeto.
Ao meu olhar curioso ressaltou-se a oposição das personagens centrais: uma é “bonitinha”,
“altinha”, enquanto a outra é “bustuda”; a menina do corpo grosso.
Caso eu fosse retratado ficcionalmente, com certeza eu também teria um corpo grosso, assim como na vida real. Mas tal característica foi salientada por uma crise de verborragia aguda e matuta do meu
pai.
Em uma tarde arrastada de domingo, num
almoço habitual, tudo corria previsivelmente. Ao término da refeição,
arrastei a cadeira para sair do local onde eu estava. Ela, por sua vez, guinchou
em protesto mediante a forte tensão com o assoalho. Um atrito que fez o meu
pai dizer: “Vai estragar a cadeira. Olha pra grossura do seu corpo!”. Saí insultado da mesa. Tranquei- me no quarto de livros em meio ao meu turbilhão
pessoal.
Horas depois, com olhos avolumados e
a cabeça pesada, o meu cérebro resgatou um flash. A rememoração do conto revelou
que pode existir nas enunciações mais impensadas, muita beleza e poesia.
Fui para a cozinha, onde a minha mãe
costurava fuxicos, li o texto de Clarice, enfatizando algumas expressões com o
intuito de tecer o ocorrido com a literatura. Nessa ação me libertei de todo o
ranço e percebi, na minha clandestinidade, lirismo e altivez. Eu tive a moral ferida por uma figura patriarcal, mas a identidade retratada através das canônicas palavras de Lispector. Que honra!
Nenhum comentário:
Postar um comentário