domingo, 8 de maio de 2011

Guaicurus de Hilda Furacão




No livro “Hilda Furacão”, a mais famosa rua boêmia de Belo Horizonte, Guaicurus, é emoldurada por descrições que revelam uma localidade marginal e, ao mesmo tempo, deslumbrante. A narrativa é banhada de um charme que só Roberto Drummond, autor da obra, poderia atribuir à uma ficção oriunda de registros jornalísticos, acontecimentos históricos e, sobretudo, uma possível mulher que rompeu com o patriarcalismo, o conservadorismo cristão e a hipocrisia de uma sociedade burguesa e senil. A garota do maiô dourado, que enfeitiçava os homens no Minas Tênis Clube, é a mesma que inebria o olhar leitor dos que não querem acreditar em sua data natalícia, um emblemático primeiro de outubro. Esta é Hilda, não apenas uma protagonista de um romance, mas um totem que demarca, ainda hoje, a tênue fronteira entre realidade e ficção.
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Na hora marcada, lá estava o garoto, devidamente vestido para uma oportuna ocasião. Dentro da sala de recursos humanos, tudo ocorreu bem e a conversa fluiu sem nenhuma adversidade. Contudo, a polifonia de seus pensamentos o deixava inquieto frente às possibilidades que se equilibravam, bambamente, sobre um fio de telefone. Teria que esperar pela ligação que confirmaria a sua contratação.
Já à caminho da rodoviária, parou em uma lanchonete qualquer. O garoto com uma expressão inerte, quase virginal, solicitou um pão com salame e um suco de laranja. Enquanto aguardava, observou que preso à parede do fundo estava um quadro que retratava uma Belo Horizonte em sua aurora fundadora.
Não foi o layout do estabelecimento que o levou até ali, tampouco a fome. Essa era apenas um pretexto, um consumo alegado. Na verdade, ele buscava um lugar onde pudesse se sentar e pensar com calma. Um hábito de solidão em meio à profusão de ruídos cosmopolitas: buzinas de carros, burburinho de pessoas, além de anúncios guturais que diziam: “Foto na hora, foto”.
Pagou a conta e transpassou a porta que o recolocaria no prumo inicial. Afonso Pena. Ônibus. Casa. No entanto, duas esquinas antes de chegar à rodoviária de BH,  leu em uma precária placa azul: Rua Guaicurus. Foi um momento catártico para uma alma tão rústica. De repente estava, sem nenhum  planejamento, no endereço daquele livro. Para ele, era um assombroso descortinamento,desvirginamento, sentimento... Sortimento!  Virou a esquina regido por um instinto animal sem saber, ao certo, o que encontraria por lá.
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Enquanto descia a rua, paradoxalmente, excitação e terror se fundiam a partir da deformação estética que se formava sob seus olhos. A falência múltipla de sua projeção revelou que o real, de fato, se difere do ficcional; só ali  percebeu essa distância. Havia se desviado do destino original e despia o endereço com os olhos arregalados e atentos às lojas que expunham conteúdo erótico nas vitrines em plena luz do dia. Estava chocado com a sua própria coragem. Era um estrangeiro passeando no inferno.
Misturado aos homens cobiçosos por sexo, ele sentia vergonha por estar ali. Quanto mais descia, descobria o que não queria ver. Natimortas prostitutas, caras que o encaravam entre o intervalo de uma tragada e outra, travestis roubando os pedestres que, por sua vez, andavam distraídos pelas diversões marginais que a rua oferecia.
Os fregueses, como em um balcão de açougue, selecionavam a carne. Tinha para todos os gostos: carne gorda, magra, fresca, velha, com conservante e até carne podre. Ali, qualquer um tinha condição, afinal, o preço era popular. Em nenhum momento encontrou a elegância apresentada na narrativa, muito menos meninas com a delicadeza de Hilda. Ali, o que imperava era a agressividade dos tipos humanos.
Vendo aquilo, já quase no final da rua, condenado por olhares inquisidores, ele retornou pelo sentido contrário do percurso que havia feito. Na medida em que reaproximava da esquina, seu rosto se abria em uma sensação de alívio, até que chegou em frente à placa, o ponto primordial que se desdobrou em descobertas.

Na rodoviária, já menos frustrado, concluiu que não há verdades literárias. Há verdades literais. Há, quem sabe, uma rerealização do subalterno. Existiu Hilda Furacão? Nunca saberá. Resta um lugar chancelado pela segregação social e moral.
 Em casa, bem tarde da noite, teria a confirmação da sua primeira vez: em suma, o primeiro sexo com a cidade.




3 comentários:

Paty L. disse...

eu adorei! Você escreve super bem, parabéns mesmo! :)

Karine Freitas disse...

ameei seus post,, segue meu blog?? beijos ;**

Clarisse Reis, a senhora Robinson disse...

Depois de algum tempo, releio o post e construo um novo sentido, mais maduro e mais inserido dentro do tema. Ter visto a minissérie e estar lendo o livro fez toda a diferença.
Muito bom seu post.