sexta-feira, 18 de abril de 2014

"A flor, O Casaco e a Sapatilha" ou "Ela" ou "A Viagem"


"Na noite onde todos estamos, 
o sábio esbarra com a parede,
 enquanto o ignorante fica
 tranquilamente no meio do quarto." 
(Anatole France)

Sou eu que contemplo os ensejos realistas de cada indivíduo. Não sou nenhuma deusa, mas te conheço bem. Talvez, pra você, eu seja a divisória do escritório ou a cerca da sua intimidade. Por ser estrutura me atraem os detalhes: o cheiro vindo do banheiro após banhos sofisticados, o perfume renovado, a acidez das lágrimas evaporadas, as cores desvanecidas, as aquarelas diluídas. Esta é a minha forma de  estar presente e, ao mesmo tempo, invisível.  

...
Reconheço-me acompanhada ao assimilar os monólogos neuróticos, as conversas proibidas, as aspirações, a linguagem não verbalizada, o olhar perdido na paisagem luz. O Sexo.
Tenho experiência e, por isso, sei que os casais mais apressados não esperam pelo champanhe. A cama trepidava com a ferocidade dos dois felinos, sob pena de ilustrar o pensamento corrupto do hóspede vizinho. Confesso que admiro enlaces passionais, pois são nos atestados afetivos que se dá a morte da solidão.
Ao lado do rodapé, uma corriqueira sapatilha. No cabideiro, o casaco esportivo. O serviço do hotel traria o jantar. Ainda haveria apetite?

...
A moça sentada estava tão emudecida que assemelhava-se a uma exótica estátua renascentista. As suas pernas adiposas já não eram as mesmas dos abundantes registros. A flor vermelha adornava sua crespura, sua coroa. Ainda no quartinho de charme imaturo, ela acertou os últimos detalhes do empréstimo: uma princesa, um príncipe e um cartão de time futebolístico.

...
Um ruído primitivo gritava do lado externo: era a chuva. Atenta a cada pessoa que atravessava o portal do bar, ela parecia sentir visceralmente a investida do tempo. O seu rosto era o rascunho de insegurança e ansiedade.
           
            Um Jovem bonito, de casaco esportivo e aliança no dedo, chegou perfurando sua projeção. Faria questão de adentrar no núcleo pouco corrompido?
_ OI. _ Ela disse com o olhar enviesado.
_ Demorei muito? _ Ofegante e visivelmente tímido, disse.
_ Nada. Cheguei tem pouco tempo também. Senta aí, véi._ Mentiu, lançando mão de uma coloquialidade quase inapropriada. Um silêncio constrangedor permeou a interlocução.
_ Toma o cartão. Usa ele de boa, porque amanhã eu vou viajar. _ Já sentado, ele olhou para a mão a segurar a credencial azul.
_ Pra onde? _ Ela perguntou por impulso. Se lembraria disso no choro da antemanhã.
_ Vou para a Europa com a minha NOIVA.
_ Estirada na Champs-Elysées! _ Endurecida pela fala do rapaz, ela brincou.
_ Pô... Falô então. Tenho que ir. Quando eu voltar a gente combina de você me devolver. _ Riu constrangidamente e se despediu não tendo mais repertório.
_ Belezinha então. Tchau.

            O cartão solitário foi depositado em cima da pequena mesa. Ela sentiu o casaco molhado ao abraçá-lo. No entanto, sem saber muito bem, as suas paredes se irrigaram sob tensão involuntária.
            O divo foi embora, atravessou a rua e entrou em seu carro branco. Meio estática, ela contou as moedas para a passagem. Voltaria de ônibus, leria “Perto do Coração Selvagem”, idealizaria um amor romântico e, como o último ato, conjugaria os seus verbos no futuro do pretérito.
            O mundo só era possibilidades e não saberia que, naquela noite, as suas fotos dormiriam sozinhas. Horas mais tarde, ouviu-se um comentário entre garçons:

_ Lembra da moça gorda? Aquela que esperou um tempão, sô... Da flor vermelha! Pois é,  morreu atropelada na rua de cima. 






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