"Na noite onde todos estamos,
o sábio esbarra com a parede,
enquanto o ignorante fica
tranquilamente no meio do quarto."
(Anatole France)
Sou
eu que contemplo os ensejos realistas de cada indivíduo. Não sou nenhuma deusa,
mas te conheço bem. Talvez, pra você, eu seja a divisória do escritório ou a cerca
da sua intimidade. Por ser estrutura me atraem os detalhes: o cheiro vindo do
banheiro após banhos sofisticados, o perfume renovado, a acidez das lágrimas
evaporadas, as cores desvanecidas, as aquarelas diluídas. Esta é a minha forma de estar presente e, ao mesmo tempo, invisível.
...
Reconheço-me acompanhada ao assimilar os monólogos neuróticos, as conversas proibidas, as aspirações, a
linguagem não verbalizada, o olhar perdido na paisagem luz. O Sexo.
Tenho
experiência e, por isso, sei que os casais mais apressados não esperam pelo
champanhe. A cama trepidava com a ferocidade dos dois felinos, sob pena de
ilustrar o pensamento corrupto do hóspede vizinho. Confesso que admiro enlaces
passionais, pois são nos atestados afetivos que se dá a morte da solidão.
Ao lado do rodapé, uma corriqueira sapatilha. No cabideiro, o casaco esportivo.
O serviço do hotel traria o jantar. Ainda haveria apetite?
...
A moça sentada estava tão emudecida que assemelhava-se a uma exótica estátua renascentista. As suas
pernas adiposas já não eram as mesmas dos abundantes registros. A flor vermelha
adornava sua crespura, sua coroa. Ainda no quartinho de charme imaturo, ela acertou os últimos detalhes
do empréstimo: uma princesa, um príncipe e um cartão de time futebolístico.
...
Um ruído primitivo
gritava do lado externo: era a chuva. Atenta a cada pessoa que atravessava o portal do bar, ela parecia sentir
visceralmente a investida do tempo. O seu rosto era o rascunho de insegurança e ansiedade.
Um Jovem bonito, de casaco esportivo
e aliança no dedo, chegou perfurando sua projeção. Faria questão de
adentrar no núcleo pouco corrompido?
_ OI. _ Ela disse
com o olhar enviesado.
_ Demorei muito? _
Ofegante e visivelmente tímido, disse.
_ Nada. Cheguei tem pouco tempo também. Senta aí, véi._ Mentiu, lançando mão de uma coloquialidade quase inapropriada. Um silêncio constrangedor permeou a interlocução.
_ Nada. Cheguei tem pouco tempo também. Senta aí, véi._ Mentiu, lançando mão de uma coloquialidade quase inapropriada. Um silêncio constrangedor permeou a interlocução.
_ Toma o cartão. Usa
ele de boa, porque amanhã eu vou viajar. _ Já sentado, ele olhou para a mão a segurar a credencial azul.
_ Pra onde? _ Ela
perguntou por impulso. Se lembraria disso no choro da antemanhã.
_ Vou para a Europa
com a minha NOIVA.
_ Estirada
na Champs-Elysées! _ Endurecida pela fala do rapaz, ela brincou.
_ Pô...
Falô então. Tenho que ir. Quando eu voltar a gente combina de você me devolver. _ Riu
constrangidamente e se despediu não tendo mais repertório.
_
Belezinha então. Tchau.
O cartão solitário foi depositado em
cima da pequena mesa. Ela sentiu o casaco molhado ao abraçá-lo. No
entanto, sem saber muito bem, as suas paredes se irrigaram sob tensão
involuntária.
O divo foi embora, atravessou a rua
e entrou em seu carro branco. Meio estática, ela contou as moedas para a passagem. Voltaria de ônibus, leria “Perto do Coração Selvagem”,
idealizaria um amor romântico e, como o último ato, conjugaria os seus verbos no futuro do
pretérito.
O mundo só era possibilidades e não
saberia que, naquela noite, as suas fotos dormiriam sozinhas. Horas mais tarde,
ouviu-se um comentário entre garçons:
_ Lembra da moça gorda? Aquela que esperou um tempão, sô... Da flor vermelha! Pois é, morreu atropelada na rua de cima.
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